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Nosso Patrono

Quintino Antônio Ferreira de Sousa Bocaiúva

(João Roberto Faria)

"Nesse ano (1860) entrara eu para a imprensa. Uma noite, como saíssemos do teatro Ginásio, Quintino Bocaiúva e eu fomos tomar chá. Bocaiúva era então uma gentil figura de rapaz, delgado, tez macia, fino bigode e olhos serenos. Já então tinha os gestos lentos de hoje, e um pouco daquele ar distant que Taine achou em Merimée. Disseram cousa análoga de Challemel-Lacour, que alguém ultimamente definia como très républicain de conviction et très anstocrate de tempérament. O nosso Bocaiúva era só a segunda parte, mas já então liberal bastante para dar um republicano convicto" (Machado de Assis, "O velho Senado").

O jornalismo e a política foram as duas grandes paixões de Quintino Bocaiúva. Ninguém ignora que ele conspirou na linha de frente contra a Monarquia e que desempenhou um papel relevante no processo histórico brasileiro como propagador dos princípios liberais, do regime democrático e do ideal republicano. Foi a partir de 1870, sobretudo, que a estrela do jornalista combativo brilhou mais intensamente. Aos 34 anos, depois de redigir a maior parte do Manifesto Republicano, coadjuvado por Salvador de Mendonça, iniciou uma trajetória ascendente que o levou a dirigir alguns dos principais jornais do Rio de Janeiro ­ A República, O Globo, O País ­ e a ocupar sucessivamente os cargos de ministro das Relações Exteriores de Deodoro, senador e presidente do estado do Rio de Janeiro.

Mas Quintino Bocaiúva não foi apenas o "príncipe do jonalismo" ou o "patriarca da República" (1). Ainda que a posteridade vá sempre reconhecê-lo por esses títulos, vale a pena lembrá-lo também como homem de teatro, pois, durante alguns anos, quando moço, participou intensamente da vida teatral brasileira, expondo suas idéias em artigos de crítica, traduzindo e escrevendo peças. Sua primeira atividade, no segundo semestre de 1856, antes de completar 20 anos, foi a de crítico teatral do Diário do Rio de Janeiro, onde publicou uma série de onze folhetins. Paralelamente devia estar preparando a "imitação" ­ termo que na época designava as adaptações livres ­ do drama O trovador, do dramaturgo espanhol Garcia Gutierrez, e a tradução da comédia em um ato Amemos o nosso próximo. Ambas estrearam no Teatro São Januário, a 3 de maio de 1857, a segunda sem o nome do autor, como acontecia muitas vezes. Durante os anos de 1857 e 1858, Quintino Bocaiúva colaborou com a Imperial Academia de Música e Ópera Nacional, traduzindo o libreto da Norma, de Bellini, e mais de uma dezena de zarzuelas espanholas. A prova de que era também um estudioso do teatro foi a publicação de um pequeno volume, em 1858, intitulado Estudos críticos e literários; lance d'olhos sobre a comédia e sua crítica. A estréia como dramaturgo não tardaria: em julho de 1860, no Teatro das Variedades, seu drama Onfália fez sucesso de crítica e público. Um ano depois, em julho de 1861, no Teatro Ginásio Dramático, foi igualmente bem acolhido o drama Os mineiros da desgraça.

Nessa altura, o prestígio de Quintino Bocaiúva no meio intelectual era muito grande. À frente do Diário do Rio de Janeiro, já se destacava como jornalista engajado no Partido Liberal, mas mantinha aceso o interesse pela literatura e pelo teatro. Foi ele quem idealizou, em 1862, a coleção Biblioteca brasileira, na qual foram publicadas, entre outras obras, as Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, e a primeira parte de As minas de prata, de José de Alencar. Nesse mesmo ano, escreveu alguns folhetins teatrais e fez ainda a "imitação" de uma peça espanhola, À borda do mar, que o Ginásio Dramático pôs em cena a 19 de julho, sem o nome do autor.

A sedução da política, entretanto, aos poucos se fez mais forte que o amor às artes. A partir de 1866, ano da publicação de sua última peça, A família (2), Quintino Bocaiúva vai se dedicar inteiramente à luta política. Num texto de março de 1866, Machado de Assis lamentou essa "baixa" na fileira das letras, que naquele momento se dava ao lado de outras, em palavras que merecem transcrição:

"Uma grande parte das nossas obras dramáticas apareceu neste último decênio, devendo contar-se entre elas as estréias de autores de talento e de reputação, tais como os Srs. conselheiros José de Alencar, Quintino Bocaiúva, Pinheiro Guimarães e outros. O Sr. Dr. Macedo apresentou ao público, no mesmo período, novos dramas e comédias, e estava obrigado a fazê-lo, como autor do Cego e do Cobé. Desgraçadamente, causas que os leitores não ignoram fizeram cessar o entusiasmo de uma época que deu muito, e prometia mais. Deveremos citar entre essas causas a sedução política? Não há um, dos quatro nomes citados, que não tenha cedido aos requebros da deusa, uns na imprensa, outros na tribuna" (3).

Alencar e Macedo, como se sabe, conseguiram conciliar a atividade política com a produção literária. Mas Quintino Bocaiúva e Pinheiro Guimarães ­ médico, herói da Guerra do Paraguai, autor de duas peças teatrais: História de uma moça rica (1861) e Punição (1864) ­ sucumbiram completamente aos "requebros" da política. A parte essa questão, o texto de Machado toca ainda num ponto fundamental para o desenvolvimento deste artigo, ao informar que Quintino Bocaiúva envolveu-se com o teatro numa época de "entusiasmo", cuja duração foi de aproximadamente dez anos, entre 1855 e 1865. Isso significa que seu interesse pelo gênero dramático, como crítico ou dramaturgo, não nasceu de um mero capricho pessoal, mas do estímulo do meio, do convívio com outros escritores e intelectuais igualmente empenhados em refletir sobre o teatro e em escrever peças. É sobre esse pano de fundo que pretendo projetar a figura do jovem Quintino Bocaiúva, para proceder à caracterização de seu pensamento crítico, de suas idéias teatrais, e à análise de sua contribuição dramatúrgica ao teatro brasileiro.

Quando Quintino Bocaiúva estreou como crítico, em julho de 1856, o Rio de Janeiro assistia ao início de uma disputa entre duas estéticas teatrais antagônicas: a romântica e a realista. De um lado, no Teatro São Pedro de Alcântara, o grande ator João Caetano cultivava as tragédias neoclássicas, os dramas e os melodramas de um repertório já envelhecido; do outro, no Teatro Ginásio Dramático, um grupo de artistas, na ocasião orientados pelo ensaiador francês Emile Doux, revelava aos espectadores fluminenses as últimas novidades dos palcos parisienses: peças de Alexandre Dumas Filho, Théodore Barrière, Emile Augier, Octave Feuillet, e de outros dramaturgos.

As diferenças entre as duas companhias teatrais eram visíveis também no terreno da interpretação. Enquanto João Caetano não economizava os exageros típicos do ator romântico ­ gestos arrebatados, fisionomia carregada, voz empostada, entradas abruptas em cena, etc. ­ , artistas como Gabriela da Cunha, Luís Carlos Amoêdo e Pedro Joaquim do Amaral procuravam atingir o máximo de "naturalidade" em seus desempenhos, visando ao efeito realista.

Quintino Bocaiúva, à semelhança de escritores e intelectuais como José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo, Francisco Otaviano, Machado de Assis, entre outros, acompanhou com muito interesse a rivalidade entre o São Pedro e o Ginásio, que se prolongou até a morte de João Caetano, em 1863. Em seus folhetins e no livro Estudos críticos e literários, lance d´olhos sobre a comédia e sua crítica, não escondeu a preferência pela mise en scène realista, pelo repertório do Ginásio e pelo estilo de interpretação de seus atores.

Em relação ao primeiro ponto, vale a pena destacar seus comentários acerca da encenação da peça A última carta, do dramaturgo português Augusto César de Lacerda. Quintino Bocaiúva recebeu uma carta de um amigo que se queixou do "luxo de realismo" empregado pelo Ginásio na disposição das cadeiras e sofás no primeiro ato, pois os artistas ficavam de costas para a platéia. Diante da novidade, preferia o velho procedimento: "... um sofá de um lado, uma conversadeira no centro, as atrizes sentadas aqui e ali, os atores em torno delas borboleteando ou vendo jogar o whist produzia mais efeito" (4). Quintino Bocaiúva, ao contrário, compreendeu a proposta inovadora da montagem e retrucou:

"Entretanto permita-me o meu amigo que discorde de sua opinião, quando entendeu um luxo de realismo a disposição cênica do teatro, que obrigou alguns atores a dar as costas ao público. O palco é um campo neutro, consintam-me; o ator não tem costas. Ele é surpreendido em sua casa pelo público, só com a diferença de que é sempre surpreendido em posições visíveis, em situações discretas. No palco há a vida, e seu desenvolvimento tal qual como no mundo. Não acho pois inconveniente, e muito menos fora do natural que o ator que está sentado a uma mesa de jogo, por exemplo, tenha as costas voltadas para o público, como num salão estaria também voltado para as pessoas, por mais distintas que fossem, que assistissem, ou tivessem ido vê-lo jogar" (5)

Algumas considerações se impõem diante dessas palavras. A primeira diz respeito ao esforço de renovação empreendido pelo Ginásio, no sentido de criar uma mise en scène realista, caracterizada não só pela naturalidade dos artistas em cena, mas sobretudo pela idéia de que deviam representar com o corpo inteiro, sem a preocupação de falar sempre de frente para a platéia. Ora, o que está implícita nessa proposição é a conhecida "teoria da quarta parede", segundo a qual o efeito ilusionista da representação teatral se alcança quando o ator "vive" o seu papel como se não estivesse diante de espectadores. Ninguém ignora que essa teoria, a pedra de toque da estética teatral realista-naturalista, foi sistematizada e posta em prática com eficiência por Antoine, à frente do Théatre Libre, em fins do século XIX. Mas a verdade é que bem antes, a partir de 1850, aproximadamente, muitos procedimentos do realismo cênico foram aos poucos invadindo os palcos franceses, principalmente o do Théatre Gymnase Dramatique de Paris, dirigido pelo ensaiador Montigny. Em seus espetáculos, os artistas também voltavam as costas ao público ­ uma atitude que para muita gente foi uma invenção de Antoine ­ e representavam como se uma "quarta parede" os separasse da platéia. O objetivo era recriar a vida no palco, através da naturalidade dos gestos e da reprodução dos hábitos do cotidiano. Acrescente-se que isso só foi possível porque o repertório de Montigny era formado preferencialmente pelas comédias realistas de Alexandre Dumas Filho, Emile Augier, Théodore Barrière, de modo que havia uma perfeita harmonia entre texto e representação.

O Teatro Ginásio Dramático, como revela o nome, inspirou-se no Théatre Gymnase Dramatique. As notícias da renovação teatral realista chegaram rapidamente ao Brasil e motivaram não só as traduções de peças francesas, mas também a assimilação de um novo modo de conceber o espetáculo. As observações de Quintino Bocaiúva acerca da montagem de A última carta iluminam, portanto, a sua própria posição favorável, como crítico, às novas idéias cênicas e à filiação estética do Ginásio, que considerava "a melhor casa de espetáculos desta corte" (6).

Sempre atento ao ritmo das encenações, à decoração, aos figurinos, ao desempenho dos artistas, o folhetinista do Diário do Rio de Janeiro deu mostras de sua adesão ao realismo teatral em várias oportunidades. A montagem da peça Por direito de conquista, de Ernest Legouvé, por exemplo, mereceu muitos elogios e apenas uma restrição, que na verdade era uma sugestão feita diretamente ao ensaiador do Ginásio: "Não Ihe parece mais conveniente e mais próprio, na cena do encontro entre a Marquesa de Oberval, Jorge e Bernardo, fazê-los sentar, como é mais natural, para depois então encetarem e continuarem a conversação que sustentam de pé?" (7). A observação pode parecer banal, mas o que está em jogo é a construção da naturalidade em cena, princípio básico do realismo teatral. O crítico atento aos mínimos detalhes percebeu que a conversação entre os personagens em pé não era "natural", isto é, não reproduzia com fidelidade o hábito do cotidiano que a cena devia representar.

Quintino Bocaiúva via o teatro como "um fiel espelho" (8) da sociedade. Mas a seu ver a imagem refletida no palco não podia ser apenas uma reprodução mecânica e neutra do real. A naturalidade em si não significava muita coisa, a menos que justaposta ao segundo princípio básico do realismo teatral francês: a moralidade. Alinhado com a maioria dos intelectuais e escritores da época, Quintino Bocaiúva acreditava que o teatro devia contribuir para o aprimoramento da vida em família e em sociedade, através da crítica moralizadora dos vícios:

"Hoje o povo e os literatos simultaneamente hão compreendido que o teatro não é só uma casa de espetáculos, mas uma escola de ensino; que seu fim não é só divertir e amenizar o espírito, mas, pelo exemplo de suas lições, educar e moralizar a alma do público; e o que tivesse nos dias presentes a extravagante idéia de querer ressuscitar no teatro essas diatribes atrabiliárias de uma consciência gasta e impura seria com razão repelido da cena pelo consenso soberano das turbas e seu nome entregue ao desprezo. Por mais opiniões, que tenho lido em contrário, resta-me ainda a convicção de que o teatro é definitivamente uma escola, onde o povo, conforme o gênero dos espetáculos que Ihe for oferecido, pode adquirir ou bons ou maus costumes, profícuas ou danosas lições (). Por isso entendo que toda a vez que uma obra dramática qualquer não encerre uma lição instrutiva, um ensino proveitoso, um fim moral, deve mos negar-lhe o lugar que pretenda na história da literatura" (9).

É muito provável que Quintino Bocaiúva tenha desenvolvido suas primeiras idéias teatrais à luz das peças francesas que viu no palco do Ginásio - peças como O mundo equívoco, de Dumas Filho; As mulheres de mármore e Os parisienses, de Théodore Barrière e Lambert Thiboust; O genro do sr. Pereira, de Emile Augier; e A crise, de Octave Feuillet, todas encenadas entre outubro de 1855 e agosto de 1856. Ora, uma das principais características do realismo teatral francês foi a feição utilitária de suas peças. Os dramaturgos mencionados acima, contrários à "arte pela arte", deram a suas obras um caráter edificante e moralizador, na medida em que se empenharam na defesa das chamadas "virtudes burguesas". O casamento, a família, a fidelidade conjugal, o trabalho, a inteligência, a honestidade, a honradez, eis os valores éticos que nas comédias realistas suplantam os vícios da sociedade, tais como o casamento por conveniência, o adultério, a prostituição, a agiotagem, o ócio e o dinheiro ganho ilicitamente.

Encarar o teatro como "uma iniciativa de moral e civilização" e "um meio de educação pública", para usar agora duas expressões de Machado de Assis (10), tornou-se uma atitude comum a toda a geração de jovens intelectuais que se agruparam em torno do Ginásio para apoiar a reforma realista. O teatro romântico, nessa altura, era sinônimo de mau gosto, de irracionalismo estéril, de arte dirigida aos instintos inferiores. Em seu Estudos críticos e literários, Quintino Bocaiúva elegeu Molière como modelo de dramaturgo a ser seguido, criticou os enredos "descabelados" e "escabrosos" do drama romântico e arrematou: "A esse novo gênero de literatura dramática, a essa série incontestavelmente brilhante de absurdos, monstruosidades e anacronismos chamou-se a Escola da Restauração, que melhor se poderia denominar a escola das desordens e anarquia literária" (11). Mais adiante é toda a visão de mundo romântica que sofre restrições, por ter inoculado no espírito dos jovens o desânimo, o ceticismo e a descrença nas instituições:

"Os sentimentos mais puros do coração, as conveniências mais melindrosas da sociedade, as mais sagradas leis da religião e do estado, tudo foi esquecido ou desprezado. A autoridade quer doméstica quer pública, ridicularizada e apupada na cena, os dogmas mais sacrossantos da filosofia e da religião, mal interpretados ou intencionalmente torcidos, deram em resultado a desmoralização do povo, o desprezo de todos os deveres, o afrouxamento das obrigações sociais, bem como o das obrigações da consciência. A família ficou sendo uma instituição ridícula, a autoridade um boneco espantalho a quem se pateava e escarnecia" (12).

As críticas contundentes que Quintino Bocaiúva desferiu ao Romantismo, num momento em que a própria estética romântica ainda era hegemônica entre os nossos romancistas e poetas, são importantes para se perceber como o teatro brasileiro assimilou com rapidez as transformações ocorridas nos palcos franceses, sobretudo no Gymnase Dramatique, reduto dos dramaturgos e artistas que iniciaram o realismo teatral. Na França, aliás, desde 1843, com o fracasso da encenação de Les Burgraves, de Victor Hugo, o Romantismo perdera terreno no teatro, suplantado pela École du bon Sens de François Ponsard e depois pela primeira geração de dramaturgos realistas, cujos maiores expoentes foram Emile Augier e Alexandre Dumas Filho. Ambos destacaram se como verdadeiros apóstolos da moralidade burguesa, realizando em suas obras o pensamento exposto pelo segundo no prefácio a Le fils naturel: "Toute littérature qui n'a pas en vue la perfectibilité, la moralisation, l'idéal, l'utile, en un mot, est une littérature rachitique et malsaine, née morte" (13).

Quintino Bocaiúva acreditava que o teatro, à semelhança da imprensa, da tribuna, do púlpito, era um meio de propaganda bastante eficaz. Como as primeiras peças francesas representadas no Ginásio apresentavam o retrato de uma sociedade civilizada, moralizada, regida por uma ética impecável, parecia-lhe que esse tipo de dramaturgia exerceria uma influência benéfica no espírito dos brasileiros. A prova de que muitos outros intelectuais pensavam a mesma coisa está no principal desdobramento da renovação teatral levada a cabo pelo Ginásio: a formação de um razoável repertório de peças nacionais, escritas sob a inspiração do realismo teatral francês. José de Alencar iniciou esse processo de assimilação em 1857, com quatro peças, mas apenas a partir de meados de 1860 houve efetiva continuidade. Durante cerca de dois anos e meio ocorreu uma extraordinária hegemonia de dramaturgos brasileiros no palco do Ginásio, onde foram enterpretados sucessivamente José de Alencar, Quintino Bocaiúva, Joaquim Manuel de Macedo, Aquiles Varejão, Pinheiro Guimarães, Sizenando Barreto Nabuco de Araújo, Valentim José da Silveira Lopes, Francisco Manuel Alvares de Araújo, França Júnior e Constantino do Amaral Tavares.

O que importa ressaltar é que Quintino Bocaiúva participou intensamente desse momento de vitalidade do teatro brasileiro, posicionando-se contra a estética teatral romântica e abraçando os princípios do Realismo introduzido pelo Ginásio. Já vimos sua contribuição) como crítico que explicou e defendeu a função moralizadora e a mise en scène caracterizada pela natuiralidade dos intérpretes. Agora, é preciso analisai a contribuição do dramaturgo, para ver em que medida ele conseguiu fazer de suas peças um "daguerreótipo moral" (14) da sociedade brasileira.

Antes disso, porém, parece-me pertinente acrescentar um rápido comentário sobre o que se poderia chamar de "ética da crítica" de Quintino Bocaiúva. Nos seus primeiros folhetins, preocupado em sistematizar o próprio pensamento, ele procurou definir os princípios, os deveres e a missão do crítico, visando superar a velha dicotomia entre o louvor absoluto e a mordacidade, que a seu ver caracterizava a prática de muitos folhetinistas.

O crítico, dizia, deve ser independente, imparcial e honesto. Mas sua independência requer critérios, assim como a imparcialidade deve abolir as prevenções e os preconceitos, para tornar-se sinônimo de justiça. A honestidade, por sua vez, significa que ao julgar as obras o crítico deve consultar apenas a sua consciência, "não pedir conselho senão a seu próprio espírito, à sua razão, ao seu estudo, e depois lavrar seu juízo, sua sentença, alheio a interesses e afeições" (15). O crítico também pode ser severo, mas não grosseiro. A delicadeza deve ser uma das suas qualidades ao apontar as deficiências de um escritor qualquer. A crítica, enfim, é uma "arte difícil", uma "manifestação leal da consciência", uma "pronúncia refletida e independente de um juízo esclarecido sobre um motivo qualquer", uma "apreciação severa e reta do merecimento das obras, que tem por missão esclarecer e corrigir, e por dever a franqueza e a imparcialidade" (16).

Quintino Bocaiúva desenvolveu essas idéias em três folhetins e incluiu-as nos dois primeiros capítulos do seu Estudos críticos e literários. O que me leva a comentá-las é a possibilidade de que tenham exercido uma larga influência sobre o espírito do jovem Machado de Assis, fato até hoje não estabelecido pelos melhores biógrafos do nosso maior escritor. Três anos mais moço, amigo e admirador de Quintino Bocaiúva, Machado professou os mesmos princípios éticos de independência, imparcialidade e honestidade, quando exerceu a crítica teatral n'O Espelho, em 1859, e no Diário do Rio de Janeiro, a partir de 1860. Mas é no conhecido artigo "O ideal do crítico", de 1865, que sistematiza sua própria "ética da crítica", em termos visivelmente próximos dos utilizados por Quintino Bocaiúva. Se o leitor quiser conferir, verá que Machado também acha a crítica uma tarefa difícil, que requer competência para tornar-se um diálogo fecundo com a criação. Além disso, a crítica deve ser sincera e exprimir a convicção do crítico, não seus ódios, simpatias ou interesses. É uma manifestação da consciência, e, como tal, deve ter estas qualidades: coerência, independência, imparcialidade, tolerância, urbanidade e franqueza sem aspereza.

A verdade é que foram muito estreitas as relações entre os dois escritores. Não é improvável, portanto, que durante algum tempo tenha havido uma ascendência de Quintino Bocaiúva sobre Machado. Foi ele que abriu as portas do Diário do Rio de Janeiro ao amigo mais moço, em 1860. E foi a ele que Machado recorreu, em 1863, para saber o valor de duas comédias que ia publicar: O protocolo e O caminho da porta. O julgamento dessas comédias, aliás, é talvez o seu texto mais conhecido. A crítica machadiana repetiu e endossou exaustivamente o argumento de que ambas, modeladas ao gosto dos provérbios franceses, não serviam para a representação, mas sim para a leitura. Quintino Bocaiúva fez outras restrições, muito educadamente. Sua principal objeção prendia-se ao fato de que as comédias não tinham uma "idéia", isto é, divertiam mas não provocavam reflexões. O que se percebe em seu texto é que tinha em mente o modelo da alta comédia ou da comédia realista francesa ao recomendar a Machado: "Já fizestes esboços, atira-te à grande pintura" (17).

A estréia de Quintino Bocaiúva como dramaturgo ocorreu no Teatro das Variedades, a 28 de julho de 1860, com o drama em sete quadros Onfália, escrito especialmente para a companhia dramática de Furtado Coelho, ator e ensaiador que se notabilizou como um dos principais defensores do realismo teatral no Brasil. O título do drama, inspirado na mitologia grega, remete o leitor à fábula da rainha da Lídia, Ônfale, que era tão bela quanto depravada. Consta que Hércules, passando em seus domínios, apaixonou-se perdidamente por ela e sujeitou-se a todo tipo de humilhação para ficar a seu lado. Parece, também, que Ônfale, para ocultar os seus desregramentos, assassinou os vários amantes que teve depois de Hércules.

Quintino Bocaiúva situou a ação dramática da peça no Rio de Janeiro de seu tempo, fazendo-a girar em torno de uma viúva rica e sem escrúpulos morais, a baronesa Lucília, que arrasta para a morte um jovem inexperiente, Jorge, escravo de uma paixão incontrolável e doentia. A platéia fluminense já havia visto esse enredo antes, mas não com tipos brasileiros. As mulheres de mármore, de Barrière e Thiboust, e Dalila, de Feuillet, eram peças conhecidas e protagonizadas pela cortesã Marco e pela princesa Léonora, mulheres que igualmente seduzem e levam à morte seus jovens amantes. Quintino Bocaiúva dialogou à vontade com essas peças. Há uma discussão entre Jorge e Lucília, por exemplo, na qual ele a chama de "mulher de mármore" (18). Em outra passagem, o ex-amante refere-se a ela como "estátua de mármore". Observe-se também a equivalência entre o título mitológico Onfália e o título bíblico Dalila: ambos dizem respeito ao tema da mulher que rouba as forças do homem.

Mas o objetivo de Quintino Bocaiúva não foi o de simplesmente criar a figura da mulher fatal. A baronesa Lucília é vista como parte de um grupo social que aparece em cena corrompido pela prostituição moral, pelo dinheiro fácil, pelo jogo e pelo ócio, É o demi-monde fluminense que o autor procura retratar, como aliás sugere este diálogo:

"Visconde ­ Tem assistido às representações do Mundo equívoco, baronesa?
Baronesa ­ Por quê? Quer ter a pretensão de parecer-se com o Oliveiros'?
Visconde ­ Não, mas queria perguntar-lhe quem é o novo Raymundo Nangeac".

O Mundo equívoco é o título brasileiro de Le demi-monde, de Dumas Filho, peça que retrata um meio social muito particular, habitado principalmente por mulheres que ocupam um lugar intermediário entre a mulher honesta e a cortesã e por pessoas cuja conduta no passado ou no presente não prima pelo respeito à moralidade burguesa. No plano das aparências, entretanto, esforçam-se todos para não parecerem o que são, a fim de serem recebidos pelas melhores famílias. As mulheres, geralmente elegantes e sem problemas financeiros, estão sempre à espera de uma oportunidade para voltarem à sociedade regular. O diálogo transcrito acima, entre Lucília e seu amante, o visconde, ocorre exatamente após uma cena em que ela confessa ver no casamento com Jorge um caminho para a regeneração. Era o mesmo desejo da baronesa Suzanne d'Ange em relação ao jovem Raymond de Nanjac, na peça de Dumas Filho, frustrado pela intervenção de Olivier de Jalin ­ Oliveiros, na tradução brasileira.

Para criar a sua Onfália, Quintino Bocaiúva parece ter aproveitado um pouco de cada peça francesa que leu ou viu encenada. De certo modo, todos os dramaturgos brasileiros do período fizeram a mesma coisa, na tentativa de nacionalizar os tipos, os temas e as formas do realismo teatral. Se por um lado isso lhes tira a originalidade, por outro revela um louvável esforço de atualização estética, uma legítima vontade de buscar o nivelamento com as literaturas mais adiantadas.

No caso particular da peça de Quintino Bocaiúva, é evidente que o retrato do demi-monde fluminense apresenta um certo colorido francês. Mas, com um pouco de boa vontade, isso pode ser visto em parte como reflexo da imitação da própria sociedade brasileira, que vivia "a faceirar-se pelas salas e ruas com atavios parisienses" (19), na observação de José de Alencar, defendendo-se da acusação de copiar a literatura estrangeira. Quer dizer, se Onfália dialoga com o modelo dramático francês, não deixa de fazer o mesmo com certos aspectos da vida social brasileira de meados do século XIX.

Quintino Bocaiúva, não se pode esquecer, tinha em alta conta a função educativa e moralizadora do teatro. Ao pôr em cena os desregramentos de Lucília e a derrocada de Jorge, procurou criar situações dramáticas que Ihe dessem a possibilidade de passar várias lições edificantes aos espectadores. Já no 1o quadro, por exemplo, há um diálogo entre Jorge e o dr. Eduardo, o raisonneur da peça e porta-voz do autor, que serve tanto para traçar o caráter dos personagens quanto para a defesa de valores como a família e o casamento, numa ótica visivelmente burguesa. Enquanto Jorge é caracterizado como um jovem emocionalmente imaturo, tomado pela paixão romântica e decidido a se casar com Lucília, Eduardo, encarnando o bom senso do homem equilibrado, tenta convencê-lo de que o casamento não pode ser guiado "pelo fogo fátuo de uma paixão tão violenta quanto há de ser passageira, tão frenética quanto há de ser malograda". Sugere ao rapaz que espere pelo "amadurecimento da razão, que fique ao lado da mãe e da irmã, pois é na pureza da família que se encontra "a verdadeira felicidade da vida".

O desdobramento dessa situação inicial tem um caráter evidentemente demonstrativo. Jorge não dá ouvidos a Eduardo e mergulha no demi-monde, iludido por uma paixão que não era correspondida. O casamento com Lucília é um desastre completo, um dia-a-dia de humilhações e sofrimentos que exaurem sua frágil alma romântica. Para Quintino Bocaiúva, essa trajetoria devia servir de advertência aos jovens de seu tempo, como aliás afirma o raisonneur neste diálogo:

"Visconde ­ Aquela mulher matou-o!
Eduardo ­ Não foi ela, foi o seu erro. A mulher foi a circunstância, a causa, sua loucura. Oxalá! que o exemplo sirva para benefício dos inexpertos".

Sem romper necessariamente com a "quarta parede", Eduardo fala ao visconde e ao espectador ao mesmo tempo. Essa é, afinal, a função do raisonneur, personagem sempre presente nos dramas e comédias realistas. Como porta-voz do autor, as idéias que defende no palco têm sempre duas direções: o personagem com quem dialoga e o público. Quanto a Jorge, pode-se dizer que ele representa o romantismo no interior do drama realista. Patético do começo ao fim, com sua linguagem inflamada e seu sentimentalismo exagerado, abandona a família e contra todas as evidências desposa uma mulher sem princípios morais, que sob o manto respeitável da viuvez tivera vários amantes. Coerente com o amor-paixão que o consome, morre para significar que esse tipo de amor não era o mais indicado para os jovens que assistiam à peça no Rio de Janeiro de 1860. Ressalte-se que sua morte ocorre propositadamente fora da cena, não para comover o
espectador, mas para servir de exemplo, como afirmou Eduardo.

A preocupação com a moralidade levou Quintino Bocaiúva a discutir ainda outro tema que o teatro realista francês abordou com alguma freqüência: o da reabilitação da cortesã ou da mulher do demi-monde. O romantismo havia permitido à cortesã purificar-se com o amor e reconquistar a dignidade perdida com o arrependimento. Marion Delorme, drama de Victor Hugo, é um bom exemplo disso. Mas os autores burgueses do realismo teatral, ao contrário, procuraram demonstrar que a mulher decaída não merecia perdão, que sua afronta à sociedade era sempre maior do que qualquer arrependimento. Nessa mesma linha, em Onfália, uma demonstração clara dos malefícios que esse tipo de mulher causa à sociedade, Lucília não tem direito ao perdão. No último quadro, quando se avizinha a morte de Jorge, ela jura estar arrependida do que foi e quer vê-lo, mas Eduardo impede-a, em nome da moral. Para ele, só Deus poderia perdoá-la. Jamais os homens: "Deus perdoa porque só ele pode extrair a harmonia das desarmonias do universo; a sociedade não porque o seu indulto seria a entronização da anarquia, a apoteose do vício".

A retórica é um defeito de Onfália e da maioria das peças da época, francesas ou brasileiras, que subiram à cena para apresentar e discutir problemas sociais. A crença na força persuasiva e redentora do teatro era tanta que os dramaturgos se transformaram em pregadores, crentes de que estavam contribuindo para o aprimoramento moral da sociedade.

A última lição edificante em Onfália, que suscita comentários, diz respeito ao caráter e à trajetória do visconde. Até o 4o quadro, ele é o rapaz dissoluto, amante de Lucília, capaz de ameaçá-la com chantagens para não perdê-la para Jorge. Cínico, espirituoso, rico, gasta sua juventude nas reuniões sociais em que nada acontece, a não ser o jogo. Nas palavras do raisonneur, é "um dos bons exemplos desgraçados que demonstram quanto uma boa educação é superior a uma boa fortuna". Mas o visconde, ao contrário de Jorge, consegue reencontrar o caminho das virtudes burguesas. Sob a influência das perorações de Eduardo e animado pelo amor sincero e puro que Ihe desperta Eulália, irmã de Jorge, ele faz sua autocrítica ao longo do 5o quadro, inteiramente dedicado a demonstrar sua regeneração. Depois de ter experimentado todos os prazeres mundanos, percebeu "que esta vida ruidosa e aventureira causa uma febre que esteriliza a alma e origina uma enfermidade de que só se convalesce o espírito na calma do lar doméstico, ao abrigo da sombra protetora que nos presta a religião da família e a tranqüilidade do coração". O amigo dos velhos tempos que o ouve fica pasmo. Mas nessa altura o visconde já é o segundo raisonneur da peça. Na seqüência do diálogo, transformado em porta-voz do autor, ele se incumbe de defender a moral, a pureza, os bons sentimentos, o casamento, a família, e de criticar a corrupção dos costumes, a mentira, o casamento por dinheiro e a paixão desenfreada (romântica) que leva à loucura e à perdição.

A regeneração do visconde dá a medida da moralidade burguesa. Seu casamento com Eulália é aceito por todos, Eduardo inclusive, sem que seu passado dissoluto o prejudique. Verdade seja dita: nesse tipo de peça a reabilitação perante a sociedade só é permitida aos homens, jamais às mulheres. A discriminação, porém, não parece ser exclusiva dos dramaturgos, uma vez que procura retratar os costumes e valores da própria sociedade em que vivem.

Fiel ao modelo da comédia realista francesa, Quintino Bocaiúva buscou realizar a síntese da moralidade com a naturalidade em Onfália. Do ponto de vista teatral, são bem realizadas as cenas que evocam o demi-monde fluminense, sobretudo no 2o e 3o quadros, quando várias personagens estão no palco ao mesmo tempo. As marcações instruem para que todos se movimentem com naturalidade e que conversem em grupos. Há, portanto, um jogo de cena com ações simultâneas e alternância nos diálogos à medida que os personagens vêm ao proscênio ou se dirigem ao fundo, que torna bastante convincente o retrato da vida social elegante, com seus homens e mulheres espirituosos, cínicos, entregues aos prazeres dessas reuniões. Mas o melhor exemplo da preocupação de Quintino Bocaiúva com a naturalidade é um pequeno diálogo de Eduardo com Lucília, no qual ele tenta fazê-la acreditar que Jorge resistirá à sua sedução e ao seu dinheiro:

"Eduardo ­ ... Veja a baronesa os tempos extraordinários em que vivemos! Há um pobre que recusa a fortuna que se oferece mas que o desonra!
Baronesa ­ Não precisa elevar-se até a ênfase da epopéia!
Eduardo ­ Pelo contrário, baronesa, esforço-me por aproximar-me à naturalidade própria da comédia que representamos".

Sem dúvida, trata-se de um bom exemplo de metateatro, e bem adequado às novas idéias teatrais que chegavam ao Brasil. A recusa do exagero romântico tornou-se uma palavra de ordem entre os jovens dramaturgos brasileiros, como se percebe nos textos críticos da época. Ocorre, porém, que a prática nem sempre segue a teoria. Apesar do domínio da noção de naturalidade, Quintino Bocaiúva escorregou ao finalizar os quadros 4o e 6o, com frases um tanto bombásticas. José de Alencar, no artigo "A comédia brasileira", de 1857, já havia criticado os finais de atos românticos, sempre caracterizados por uma frase de efeito ou por um lance de intensidade dramática. Em Onfália, no desfecho do 4o quadro, a mãe de Jorge desmaia ao vê-lo aos pés de Lucília prometendo eterno amor. Quando todos vão acudi-la, Eduardo detém Lucllia, dizendo-lhe: "Respeito à desgraça, baronesa! É sua mãe que desmaia sobre o túmulo de seu filho".

Como é difícil o aprendizado das novas formas! Onfália, como se vê, não é nenhuma obra-prima. É uma peça irregular, que às vezes abusa da retórica no afã de moralizar, porém com boas e más cenas e escrita de acordo com os padrões estéticos vigentes nos meados do século XIX. Trata-se, enfim, de uma peça de época, irremediavelmente datada, porque seu autor quis interferir no debate social de seu tempo, trazendo ao palco os costumes de uma parcela da sociedade fluminense. O esquecimento em que jaz, hoje, contrasta vivamente com o sucesso que fez no passado, interpretada por Furtado Coelho, no papel do visconde, e por Eugênia Câmara, no papel de Lucília. Ambos viajaram por quase todo o Brasil, em 1861 e 1862, e fizeram de Onfália uma das peças mais aplaudidas de seu repertório, ao lado da Dalila de Feuillet. Furtado Coelho reencenou ­ a no Ginásio Dramático, em 1865, e no Teatro São Luís, em 1882. Essa última montagem levou França Júnior a escrever um folhetim muito bonito, de reverência a Quintino Bocaiúva, no jornal O Globo. "Príncipe dos jornalistas, poderias ser também o príncipe dos dramaturgos, se não tivesse parado em meio da carreira tão brilhantemente encetada (20), começa dizendo, para em seguida rememorar um tanto nostalgicamente os bons tempos da renovação teatral realista. Mais que isso, França Júnior descreve a noite de estréia de Onfália e a impressão que o espetáculo Ihe causou. As palavras que vão ser transcritas, para quem conhece o valor da obra do autor de As doutoras, atestam a boa repercussão da peça de Quintino Bocaiúva em sua época:

"A audição, pois, do teu drama, meu caro Quintino, depois de vinte anos que já lá se vão, despertou-me essas gratas e ao mesmo tempo tristes impressões.
Quando ouvi-o pela primeira vez, não te conhecia pessoalmente.
Tive ímpetos de abraçar-te.

Voltei para casa a sonhar umas cousas que até então não me haviam ainda passado pela cabeça.
No dia seguinte disse com os meus botões:
­ Vou escrever um drama.
Rabisquei algumas folhas de papel ... e nada.
­ Vou escrever um folhetim.
Ainda papel rabiscado ... e nada.
­ Se escrevesse uma comédia ... murmurei baixinho ao meu eu, Está dito. Vou escrever.
Cursava o meu terceiro ano de Direito na Faculdade de São Paulo, e cometi o meu primeiro trabalho para o teatro: Meia hora de cinismo.
Devo, portanto, a ti e aos teus bons companheiros de lutas a carreira que humildemente trilho" (21).

Depois de Onfália, Quintino Bocaiúva escreveu Os mineiros da desgraça, drama em quatro atos que estreou a 19 de julho de 1861 no Teatro Ginásio Dramático. Como, a essa altura, outros dramaturgos brasileiros já estavam participando do processo de renovação teatral, inspirados pelo novo repertório francês, ele introduziu este diálogo bastante revelador em sua nova peça:

"Maurício ­... Há de ter ouvido acusar o nosso teatro de ser mais francês do que nacional, não é exato?
Paulo ­ Muitas vezes.
Maurício ­ E como não há de sê-lo, se francesa é a nossa sociedade, franceses os nossos vícios, franceses os nossos estudos, os nossos costumes, o trajo, as modas, a conversação, enfim tudo? Ah! meu amigo, se a França nos desse em espírito o que nos manda em quinquilharias, éramos uma grande nação! Mas como só Ihe tomamos, e por bom preço, o que ela tem de mais insignificante, de pior, chamam-nos, com razão, um povo de macacos" (22).

É claro que essas palavras não escondem o grau de dependência do teatro brasileiro em relação ao teatro francês. Mas por que não aceitar o argumento de que na ocasião a nossa sociedade incorporou à sua fisionomia um bom número de valores, idéias, costumes franceses? Como lamenta Maurício, o raisonneur da peça, "nós temos igualmente o nosso mundo equívoco" (23). Ou seja, a cópia do modelo dramático francês é até positiva, por ser coisa do espírito. O que se deve condenar é a importação de quinquilharias e a imitação dos defeitos morais, pois disso resulta a formação de uma sociedade fútil e falsa, desprovida dos valores éticos que dignificam a existência humana. Mais uma vez, portanto, Quintino Bocaiúva, objetivando moralizar, retrata o demi-monde fluminense, só que agora para trazer ao proscênio a figura abjeta do usurário, reduplicada nos personagens Venancio e Vidal. São eles os mineiros da desgraça do título, pois ilustram com seus negócios escusos o mal que causam às famllias honestas e à sociedade em geral.

A peça tem uma nítida divisão em duas partes. Os dois primeiros atos, bem mais curtos que os demais, servem praticamente de prólogo para o que Quintino Bocaiúva pretende de fato mostrar. A ação, restrita a poucos personagens, é rápida, apesar de uma ou outra lição moral embutida nos diálogos. João Vieira, pequeno negociante, sua filha Elvira e Paulo, seu guarda-livros, são os defensores do trabalho, da honestidade, da honra, enquanto os usurários são os seus algozes. O ponto de partida da peça é a falência iminente de João Vieira, impossibilitado de pagar as dívidas contraídas com Venâncio. O primeiro ato mostra os métodos do usurário, sua ganância e insensibilidade diante da aflição de um homem honrado, porém malsucedido nos negócios. Quem o salva da ruína é Vidal, simulando ser um homem de bem para aproximar-se de Elvira, por quem se interessa. Já no segundo ato, entretanto, suas verdadeiras intenções são reveladas ao espectador. Como Paulo e Elvira se amam, Vidal, com mentiras bem articuladas, consegue separá-los e fazer João Vieira despedir o rapaz.

Se nos dois primeiros atos Quintino Bocaiúva fixa o caráter dos usurários, mostrando-os como seres ignóbeis, no terceiro e quarto é que os objetivos moralizadores da peça são verdadeiramente alcançados. Qual é o lugar que os usurários ocupam na sociedade? Eis o que vai mostrar o terceiro ato, através de um daguerreótipo abrangente do demi-monde fluminense e dos co mentários cáusticos do raisonneur Maurício.

A ação se passa na casa de Venâncio, agora um rico comendador, mas sempre usurário, muitos anos depois dos acontecimentos do segundo ato. E um baile justifica a presença de vários personagens que o autor faz desfilar em cena, num claro processo de desvendamento dos defeitos morais da sociedade. Ernesto é o jovem afrancesado, fútil e preguiçoso, que já não sabe como pagar o que deve a Vidal; Jorge, seu amigo, só fala banalidades e tem um ideal: tornar-se capitalista para comprar os belos móveis que vê na casa de Venâncio; Olímpia é a mulher adúltera, apaixonada por Ernesto; e Maria é quase uma alcoviteira, querendo jogar uma amiga malcasada nos braços de um homem que mal conhece. Duas cenas reforçam o caráter dos usuários: Vidal convence Olímpia a pagar a dívida de Ernesto com uma pulseira valiosa, enquanto o rapaz, sem saber disso, é explorado por Venâncio ao aceitar mais um empréstimo. Para completar esse quadro, há ainda a figura de um político corrupto que dá empregos aos seus apaniguados.

Todos esses personagens ilustram com suas ações e pensamentos expostos nos diálogos o lado podre da sociedade que Quintino Bocaiúva condena, o "mundo equívoco" que seu porta-voz, o raisonneur Maurício assim descreve:

"Mundo flutuante, que acompanha a sociedade, que se transforma, que se engrandece à custa do que rouba ou recruta em todas as classes úteis. Esses banqueiros fraudulentos, esses rebatedores sem alma, as mulheres sem pudor e as crianças sem virgindade, os sedutores de profissão, os empregados ociosos e concussionários, os juízes prevaricadores, todas essas exceções monstruosas que envergonham a probidade social, que desonram aos companheiros do ofício e que entristecem o coração nacional, tudo isso faz parte desse mundo híbrido e repulsivo. Não há lugar vedado a essa classe de parasitas; eles têm uma representação em todos os lugares, no governo, nas câmaras, nas igrejas, nos salões, nos teatros. Adorados por uns, escarnecidos por outros, detestados por alguns, esses aleijões sociais pavoneiam-se altivos, e, pode-se dizer, que têm a primazia das venturas efêmeras; felizmente efêmeras!" (24).

Como em Onfália, a retórica toma conta de Os mineiros da desgraça, nos momentos em que o raisonneur resolve espicaçar o demi-monde. Nesse tipo de peça, diga-se de passagem, as ações dos personagens nunca são suficientes para exprimir todo o pensamento dos autores. Daí o recurso a essas intromissões que prejudicam o ritmo dramático, por serem muitas vezes longas e enfadonhas, mas que fazem parte do gênero.

O interlocutor de Maurício ao longo do terceiro ato é Paulo. O diálogo entre eles, recheado de sentenças moralizadoras, serve também para dar andamento ao enredo, na medida em que são trazidos à tona os desdobramentos dos fatos ocorridos no final do segundo ato. Elvira casou-se com Vidal e, obviamente, é muito infeliz. Paulo foi viver em Portugal e agora está de volta para punir o usurário. Tem provas que o incriminam como passador de notas falsas e vai entregá-las à polícia.

Como se vê, o enredo é simples demais, quase um pretexto para a exposição de idéias, de opiniões sobre a organização social, de defesa da honestidade, do trabalho, da honra, de um estilo de vida, enfim, regido pelos bons sentimentos. O quarto ato, evidentemente, não foge à regra. A punição dos usurários, no desfecho, só ocorre depois de várias cenas criadas para torná-los mais desprezíveis, justificando assim outras intervenções moralizadoras. Quintino Bocaiúva não perde inclusive a oportunidade de passar ao espectador suas idéias sobre a imprensa, num diálogo travado entre Maurício e os usurários. Vidal pretendia contratá-lo para criar um jornal que servisse aos seus interesses, mas desiste diante das idéias do raisonneur, que, entre outras coisas, Ihe diz:

"A imprensa é uma cousa santa! O jornalista é ou deve ser um homem de bem. Sua missão é nobre; sua responsabilidade imensa! Nas mãos de um cavalheiro, a imprensa chama-se uma espada; nas de um bandido chama-se um punhal. Um defende a justiça, o direito, o progresso, a segurança pública, a honra nacional. O outro especula, assassina para roubar, fere para vingar-se, combate por um lucro, arruína a pátria e desmoraliza tudo, corrompe para vencer, abate para fazer-se grande entre as ruínas. Eu sou pela imprensa honesta, por aquela que respeita a sua consciência e os seus deveres; a que engrandece a virtude e debela o crime, a que se bate com desinteresse e põe sua glória no serviço da justiça e da religião" (25).

Apesar da retórica dessa fala, o diálogo entre os três é um tanto espirituoso, pois, hipocritamente, Venâncio e Vidal concordam com tudo o que diz Maurício, que expõe seu programa para um jornal, concluindo que a imprensa deve lutar pela moralização da sociedade, contra "esses agiotas infames, usurários sem alma, avarentos sem pudor, que não contentes de roubarem aos pobres, fazem-se moedeiros falsos e roubam também ao Estado, dilapidando a fortuna pública" (26).

Quanto ao enredo, a prisão de Venâncio e Vidal, no desfecho, coroa o intuito moralizador da peça. Os usurários são castigados porque "não há impunidades eternas" e porque "a moral e a lei suprema das sociedades modernas" (27).

Comparada a Onfália, Os mineiros da desgraça é uma peça que realiza mais satisfatoriamente o ideal da comédia realista ­ o que não significa que seja melhor. Enquanto na primeira há marcas do romantismo nos finais dos quadros 4o e 6o, no caráter, na linguagem e na trajetória de Jorge, na segunda não há nenhum personagem, diálogo ou cena que não esteja de acordo com a nova tendência teatral. É certo que ambas compartilham do mesmo defeito: o abuso da retórica, por força do propósito moralizador. Mas em relação à naturalidade e ao efeito realista, é forçoso reconhecer a maior coerência interna de Os mineiros da desgraça. Um crítico da época, Henrique César Muzzio, observou que "Vidal e Venancio são dois tipos de que se acotovelam as cópias diariamente nas ruas da cidade (28). E Machado de Assis, num folhetim bastante elogioso, afirmou que o drama tocou no íntimo do público, "porque se Ihe falou a verdade, e, como diz o mestre da sátira moderna: rien n'est beau que le vrai" (29).

Sem dúvida, em Os mineiros da desgraça, Quintino Bocaiúva desprendeu-se dos enredos das peças francesas e criou uma trama simples, porém própria, com tipos elaborados a partir da observação da vida social brasileira, conforme o testemunho dos folhetinistas. Mas nem isso impediu que todos os valores morais, todas as discussões em torno da agiotagem, da ganância, do dinheiro ganho ilicitamente fossem inspiradas no repertório francês que os brasileiros conheciam na época como leitores ou espectadores de peças como La question d'argent, de Dumas Filho, Les parisiens e L'heritage de monsieur Plumet, de Barrière, entre outras.

O que explica, a meu ver, a dramaturgia de Quintino Bocaiúva e de toda a geração que se uniu em torno do Ginásio, por volta de 1860, é uma espécie de "desejo de civilização". Nossos jovens intelectuais, vivendo num país novo, ainda em formação, viram nas peças francesas o modelo de sociedade que queriam para o Brasil. Uma sociedade moderna, civilizada, moralizada, regida pela ética burguesa e alicerçada na solidez do casamento e da família. Ou, nas palavras de um personagem de José de Alencar, uma sociedade caracterizada pela "união das famílias honestas" (30).

É com essa preocupação que Quintino Bocaiúva escreve ainda sua última peça, cujo título já é um programa: A família. Com os mesmos procedimentos dramáticos utilizados em Onfália e Os mineiros da desgraça, assistimos ao elogio dessa instituição, nas lições edificantes que nascem de uma trama um tanto frouxa: a descoberta que um marido faz, depois de vinte anos de vida conjugal, que sua mulher, antes do casamento, teve um filho. Não pretendo cansar o leitor, repe tindo frases deste tipo: "... a mãe de família não é só o alicerce do lar doméstico, mas a base da sociedade inteira" (31).

O que importa ressaltar, para concluir, é que o teatro utilitário apregoado por Quintino Bocaiúva teve uma presença marcante em nossa vida cultural, entre os anos de 1855 e 1865. Quando o Ginásio começou a representar as peças de Dumas Filho, Augier, Barrière, o entusiasmo dos jovens intelectuais foi imenso. O realismo teatral francês não só apontava o caminho da renovação como demonstrava que o dramaturgo tinha forças para influir na própria organização social. O resultado do entusiasmo foi a formação de um repertório de peças nacionais voltado para o duplo objetivo de modernizar o teatro Brasileiro e torná-lo útil para o aprimoramento moral da nossa sociedade.

JOÃO ROBERTO FARIA é professor de Literatura Brasileira do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH da USP, e autor de José de Alencar e o teatro (Editora Perspectiva)

 

Descartes de Souza Teixeira VM 24/06/2003

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