O Lamento das Tumbas PDF Imprimir
Ter, 02 de Dezembro de 2008 09:05

(Gibran Kahlil Gibranh)

 

O Emir entrou na sala do júri e sentou-se na cadeira principal, enquanto à sua direita e à sua esquerda sentavam-se os homens mais destacados do país. Os guardas, armados com lanças e espadas, ficaram de sentinela, e o povo que veio assistir ao julgamento se levantou e curvou-se cerimoniosamente para o Emir, de cujos olhos emanava uma força que incutia horror em seus espíritos e medo em seus corações. Como a corte estava pronta e a hora do julgamento se aproximava, o Emir levantou a mão e ordenou: — Tragam os criminosos um a um, e digam-me que crimes cometeram. — A porta da prisão se abriu como a boca bocejante de uma besta feroz. Dos cantos obscuros da masmorra, qualquer um podia ouvir o eco do chocalhar das correntes, em uníssono com os gemidos e lamentações dos prisioneiros. Os espectadores estavam ansiosos para ver cada vítima da Morte emergindo das profundezas daquele inferno.

 

Alguns momentos depois, dois soldados vieram, trazendo um jovem com os braços amarrados atrás das costas. Seu rosto severo indicava nobreza de espírito e fortaleza de coração. Ele estava parado no meio da sala do tribunal, e os soldados recuaram alguns passos. O Emir encarou-o serenamente e disse:

 

— Que crime cometeu este homem, que está orgulhosa e triunfalmente de pé diante de mim?

 

— Um dos homens da corte responde:

 

— Ele é um assassino; ontem matou um dos oficiais do Emir, que estava numa missão importante, nas aldeias vizinhas; ele ainda segurava a espada ensangüentada quando foi preso.

 

— O Emir retorquiu com raiva:

 

— Levem o homem para o calabouço, amarrem-no com pesadas correntes e, de madrugada, cortem-lhe a cabeça com sua própria espada, joguem seu corpo no mato, para que os animais possam comer sua carne, e o ar possa carregar seu odor putrefato para as narinas de seus familiares e amigos.

 

— O jovem voltou para a prisão, enquanto o povo olhava para ele com olhos piedosos, pois era um homem jovem, na flor da idade.

 

Os soldados voltaram, trazendo então uma moça de beleza delicada e sem artifícios. Ela estava pálida e nas suas faces apareciam os sinais da opressão e da decepção. Seus olhos estavam molhados de lágrimas e a cabeça tombava sob a carga do seu pesar. Depois de olha-la de cima a baixo, o Emir exclamou:

 

— E essa mulher macilenta, que está de pé diante de mim como a sombra ao lado de um cadáver, o que fez?

 

— Um dos soldados respondeu-lhe dizendo:

 

— Ela é uma adúltera; a noite passada, seu marido encontrou-a nos braços de outro. Depois que o amante fugiu, o marido a trouxe para a lei.

 

— O Emir encarou-a, enquanto ela levantava o rosto sem expressão, e ordenou:

 

— Levem-na de volta ao calabouço e estendam-na sobre uma cama de espinhos para que possa lembrar-se desse lugar de repouso que ela sujou com sua falha; dêem-lhe vinagres misturados com bílis para beber, para que possa lembrar-se do gosto dos beijos doces. De madrugada, arrastem seu corpo nu para fora da cidade e apedrejem-no. Deixem que os lobos saboreiem a carne macia de seu corpo e os vermes penetrem nos seus ossos.

 

— Quando ela voltou para a cela escura, o povo olhou-a com simpatia e surpresa. Eles estavam assombrados com a justiça do Emir e preocupados com o destino dela.

 

Os soldados reapareceram trazendo um homem triste, cujos joelhos batiam e tremiam, como uma árvore nova face ao vento do norte. Ele tinha um olhar sem forças, fraco e amedrontado, e era pobre e miserável. O Emir o encarou com repugnância e inquiriu:

 

— E este homem imundo, que é como um morto entre os vivos, o que fez?

 

— Um dos guardas falou:

 

— Ele é um ladrão que arrombou o monastério e roubou os vasos sagrados, que os monges encontraram em seu poder, quando o prenderam.

 

Como águia faminta que olha para um pássaro de asas partidas, o Emir encarou-o e sentenciou:

 

— Levem-no de volta para a prisão e acorrentem-no, e de madrugada arrastem no até uma árvore bem alta e enforquem-no entre o céu e a terra. Assim, suas mãos pecadoras morrerão e os membros de seu corpo sem vida se transformarão em joguete do vento.

 

— Quando o ladrão cambaleou de volta às profundezas da prisão, o povo começou a cochichar entre si, dizendo:

 

— Como ousa tal homem fraco e herege roubar os vasos sagrados do monastério?

 

Nessa hora, a corte suspendeu a sessão e o Emir saiu, acompanhado por todos os seus dignitários, guardado pelos soldados, enquanto a assistência se dispersava e no lugar vazio se ouviam o lamentar e o gemer dos prisioneiros. Tudo isso aconteceu enquanto eu estava lá, de pé, como um espelho, diante dos fantasmas que passavam.

 

Eu pensava nas leis feitas pelo homem para o homem, testemunhando o que o povo chama de "justiça" e absorvido em profundos pensamentos sobre os segredos da vida. Tentei entender o sentido do universo. Eu me achava aturdido, sentindo-me como um horizonte envolvido entre as nuvens. Quando deixei o lugar, disse a mim mesmo: "O vegetal se alimenta dos elementos da terra, a ovelha come o vegetal, o lobo devora a ovelha e o touro mata o lobo, enquanto o leão devora o touro; também a Morte chama o leão. Há algum poder que se sobreponha à Morte e faça dessas brutalidades uma eterna justiça? Haverá uma força que possa converter todas essas coisas horríveis em coisas belas? Não existirá nenhum poder capaz de agarrar com suas mãos todos os elementos da vida e enlaça-los com alegria, como o mar prazerosamente engolfa todos os riachos nas suas profundezas? Não há nenhum poder que possa aprisionar o assassinado e o assassino, o traído e o traidor, o ladrão e o roubado, e trazê-los para uma corte mais elevada e mais capaz que a corte do Emir?

 

No dia seguinte, deixei a cidade e fui para os campos, onde o silêncio revela à alma o que o espírito está buscando, e onde o céu puro mata os germes do desespero gerados na cidade entre as ruas estreitas e os lugares escuros. Quando cheguei ao vale, vi um bando de corvos e abutres planando e descendo, enchendo o céu com o seu gralhar e o zunir e o bater das asas.

 

Quando prossegui, vi diante de mim o cadáver de um homem pendurado no alto de uma árvore, o corpo de uma mulher nua no meio de um amontoado de pedras e a carcaça de um jovem cuja cabeça cortada estava encharcada de sangue misturado com a terra. Foi uma visão horrível, que me cegou os olhos com espesso e denso véu de aflições.

 

Olhei em todas as direções e nada vi, exceto o espectro da Morte ao lado daqueles restos horrorosos. Nada se ouvia, só o gemido da não-existência, misturado com o gralhar dos corvos que rondavam as vítimas das leis humanas. Três seres, que ontem estavam nos braços da Vida, hoje tombam como vítimas da Morte porque quebraram as leis da sociedade. Quando um homem mata um outro, o povo diz que é um assassino; mas, quando o Emir o mata, o Emir é justo. Quando um homem rouba o monastério, dizem que é um ladrão; mas, quando o Emir lhe rouba a vida, o Emir é honrado. Quando uma mulher trai o marido, dizem que é uma adúltera; mas, quando o Emir a faz andar nua pelas ruas e ordena que a apedrejem, o Emir é nobre. O derramamento de sangue é proibido, mas quem o torna legal para o Emir?

 

Roubar o dinheiro de alguém é um crime, mas tirar a vida de uma pessoa é um ato nobre. A infidelidade a um marido pode ser uma ação horrorosa, mas apedrejar almas vivas é um maravilhoso espetáculo. Devemos combater o mal com o mal e dizer que isso é a Lei? Devemos combater a corrupção com a corrupção maior e dizer que isso é a Regra? Devemos subjugar os crimes com mais crimes e dizer que isso é a Justiça? Não matou o Emir nenhum inimigo na sua vida pregressa? Jamais roubou, de seus súditos fracos, dinheiro e propriedade? Não cometeu nenhum adultério? Era ele um homem sem faltas quando matou o assassino, enforcou o ladrão e apedrejou a adúltera? Quem são esses que enforcaram o ladrão na árvore? São anjos descidos do céu, ou homens saqueadores e usurpadores? Quem cortou a cabeça do assassino? São profetas divinos, ou soldados derramando sangue por onde quer que vão? Quem apedrejou aquela adúltera? Foram eremitas virtuosos que vieram de seu monastério, ou humanos que amam cometer atrocidades com alegria, sob a proteção de uma lei retrógrada? O que é a Lei? Quem a viu vindo como o sol da imensidão do céu? Que ser humano viu o coração de Deus e nele vislumbrou seus desejos e propósitos? Em que século os anjos andaram entre o povo, pregando: "Proíbam o fraco de aproveitar a vida, e matem os marginais com a lâmina afiada da espada, e pisem sobre os pecadores com pé de ferro"?

 

Enquanto minha mente sofria dessa forma, ouvi ruído de passos que se aproximavam pelo caminho. Prestei atenção e vi uma jovem vindo de trás das árvores; ela olhou cautelosamente em todas as direções, antes de se acercar dos três corpos que lá estavam. Logo seus olhos caíram sobre a cabeça cortada do jovem.

 

Ela chorou convulsivamente, ajoelhou-se e a abraçou com seus braços trêmulos; de seu rosto desciam lágrimas, enquanto ela acariciava com seus dedos suaves os cabelos anelados e emaranhados com o sangue, chorando com uma voz que vinha do fundo de um coração despedaçado. A jovem não pôde mais suportar a visão. Arrastou o corpo até uma vala, colocou-lhe a cabeça delicadamente entre os ombros, cobriu-o todo com terra e sobre a cova improvisada colocou a espada com a qual a cabeça do infeliz tinha sido decepada.

 

Como a moça fizesse menção de partir, dirigi-me a ela. A jovem tremeu quando me viu, e seus olhos estavam cheios de lágrimas. Ela suspirou e disse:

 

— Leve-me até o Emir, se quiser; para mim é melhor morrer e seguir aquele que salvou a minha vida das garras da desgraça, do que deixar seu cadáver como alimento para os animais ferozes.

 

— Respondi-lhe:

 

— Não tenha medo de mim, pobre garota, condói-me da morte desse jovem antes de você o fazer. Mas diga-me, como ele a salvou das garras da desgraça?

 

— A moça replicou, com uma voz cautelosa e débil:

 

— Um dos oficiais do Emir veio à nossa fazenda para coletar o imposto; quando me viu, olhou-me como um lobo olha para uma ovelha. Ele cobrou a meu pai um imposto tão pesado, que mesmo um homem rico não poderia pagar. Fui então detida e levada em penhor para o Emir em garantia do ouro que meu pai não podia dar. Imporei-lhe que me poupasse, mas ele não se comoveu, pois era friamente impiedoso. Gritei então por socorro, e esse jovem que está morto aqui agora veio em meu socorro, e salvou-me de uma morte em vida. O oficial tentou mata-lo, mas meu protetor golpeou-o com uma velha espada que estava pendurada na parede de nossa casa. Ele não fugiu como um criminoso; ao contrário, ficou junto ao corpo do oficial morto até a lei chegar e leva-lo sob custódia.

 

— Depois de ter proferido essas palavras que fariam qualquer coração humano sangrar de compaixão, ela virou o rosto e foi embora.

 

Pouco tempo depois vi um jovem que se aproximava com o rosto envolvido por um manto. Quando se aproximou do cadáver da adúltera, ele desdobrou o manto e colocou-o sobre o corpo nu. Então tomou uma adaga que trouxera escondida e cavou um buraco, no qual colocou com carinho e cuidado a moça morta; cobriu-a com terra, sobre a qual ia derramando suas lágrimas. Ao acabar a tarefa, o jovem arrancou algumas flores e colocou-as reverentemente naquele túmulo tosco. Quando ia sair, eu o detive dizendo:

 

— Que tipo de relação você tinha com a adúltera? E o que o impeliu a pôr a vida em perigo, vindo até aqui para proteger-lhe o corpo nu contra os animais ferozes?

 

— Quando me encarou, seus olhos pesarosos estampavam seu infortúnio, e ele explicou:

 

— Eu sou o homem desgraçado por amor de quem ela foi apedrejada. Eu a amava e ela me amava desde a infância; crescemos juntos; o Amor, a quem nós servimos e reverenciamos, era o dono de nossos corações. O Amor uniu-nos e enlaçou nossas almas. Um dia ausentei-me demoradamente da cidade, e quando voltei descobri que seu pai a obrigara a casar com um homem que ela não amava. Minha vida tornou-se uma luta perpétua, e todos os meus dias foram convertidos numa longa e escura noite. Tentei dar paz a meu coração, mas meu coração não se conformava.

 

Finalmente, fui vê-la secretamente; meu único propósito era ter uma breve visão de seus olhos maravilhosos e escutar o som da sua voz serena.

 

Quando cheguei à sua casa, encontrei-a sozinha, lamentando-se. Sentei-me a seu lado, o silêncio era a nossa importante conversação e a virtude, a nossa companheira. Uma hora de mudo entendimento se passara, quando seu marido entrou. Eu o adverti para conter-se, mas ele a arrastou para a rua e gritou: "Venham, venham e vejam a adúltera com seu amante!" Todos os vizinhos se precipitaram, e mais tarde veio a Lei e levou-a até o Emir; mas eu nem fui tocado pelos soldados. A Lei ignorante e os costumes estúpidos puniram a mulher pela falta de seu pai e perdoaram o homem.

 

Depois de assim ter falado, o jovem caminhou em direção à cidade. Permaneci meditando sobre o cadáver do ladrão pendurado naquela árvore imponente, o qual se movia levemente cada vez que o vento batia nos galhos, esperando talvez por alguém que o descesse e o estendesse na superfície da terra ao lado do Defensor da Honra e da Mártir do Amor. Uma hora depois, uma frágil e miserável mulher apareceu, chorando. Ela parou em frente ao homem enforcado e rezou reverentemente. Então subiu na árvore e roeu com os próprios dentes a corda de linho até que ela arrebentasse e o morto caísse no chão como se fosse um invólucro macabro; depois desceu, cavou uma vala e enterrou o ladrão ao lado das duas outras vítimas. Em seguida cobriu-o com terra, pegou dois pedaços de madeira, fez uma cruz e colocou-a na cabeceira.

 

Quando ela se dirigia para a cidade, iniciando uma caminhada, eu a detive falando-lhe:

 

— O que a fez vir aqui e enterrar o ladrão?

 

— Ela me olhou intensa e tristemente e justificou:

 

— Ele é meu fiel marido e companheiro dedicado; é o pai de meus filhos: cinco rebentos que morrem de fome; o mais velho tem oito anos, e o mais novo é ainda de colo.

 

Meu marido não era um ladrão, mas um camponês que trabalhava na terra do monastério, sustentando-nos com a pouca comida que os padres e monges lhe davam, quando ele voltava para casa, ao anoitecer.

 

Ele trabalhava para eles desde a juventude, e quando ficou fraco os padres o demitiram, aconselhando-o ir para casa e a mandar seus filhos tomar seu lugar, assim que estivessem mais velhos. Meu marido implorou em nome de Jesus e dos anjos do céu para que o deixassem ficar, mas não deram atenção ao apelo.

 

Não tiveram pena dele, nem de seus filhos famintos, que estavam desesperadamente chorando por comida. Meu companheiro dirigiu-se então para a cidade em busca de emprego; mas foi tudo em vão, pois o rico só emprega aquele que está forte e saudável. Então, ele foi sentar-se na rua poeirenta, estendendo a mão aos que passavam, pedindo e repetindo-lhes a triste cantilena da sua derrota na vida, sofrendo fome e humilhação; mas as pessoas se recusavam a ajudá-lo, considerando-o como um daqueles preguiçosos que não merecem esmolas.

 

Uma noite, a fome torturava dolorosamente os nossos filhos, principalmente o menor, que tentava inutilmente mamar no meu seio já seco. Então a expressão do rosto de meu marido mudou e ele saiu de casa, protegido pela escuridão da noite. Entrou no depósito do monastério e arrastou para fora um saco de trigo. Assim que saiu, os monges acordaram de seu sono leve e o prenderam, depois de o surrar impiedosamente. De madrugada, levaram-no até o Emir e queixaram-se de que ele fora até o monastério para roubar os vasos de ouro do altar. Prenderam-no, e o enforcaram no segundo dia.

 

Ele estava apenas tentando alimentar seus pequenos famintos, com o trigo que colheu de seu trabalho; mas o Emir o matou e usou sua carne para encher o estômago dos pássaros e dos animais.

 

— Dizendo isso, ela me deixou sozinho, espiritualmente arrasado, e partiu.

 

Fiquei parado diante das covas, como um orador atacado de súbita mudez, enquanto tentava fazer um necrológico. Eu estava mudo, mas minhas lágrimas, que rolavam, substituíam as palavras e falavam por minha alma.

 

Meu espírito rebelou-se quando tentei meditar por algum tempo, porque a alma é como uma flor que deixa suas pétalas caírem quando anoitece, e não exala seu aroma para os fantasmas da noite. Pareceu-me que aquela terra que envolvia as vítimas da pressão, naquele lugar solitário, enchia meus ouvidos com os lamentos das almas sofredoras e me impedia de falar.

 

Recorri ao silêncio, pois se as pessoas entendessem o que o silêncio lhes revela estariam tão junto de Deus quanto as flores do vale. Se as chamas que incendiavam minha alma melancólica tivessem tocado as árvores, elas se moveriam de seus lugares e marchariam como um exército poderoso para lutar contra o Emir brandindo seus galhos, e demoliriam o monastério sobre as cabeças desses padres e monges.

 

Fiquei ali meditando, e percebi que o doce sentimento da misericórdia e a amargura do pesar jorravam de meu coração sobre os recém-cavados túmulos. O túmulo de um jovem que sacrificou sua vida defendendo uma frágil donzela, cuja existência e honra ele salvou do meio das patas e das garras de um ser humano selvagem; um jovem cuja cabeça foi cortada como recompensa de sua bravura; e sua espada foi colocada sobre seu túmulo pela pessoa que ele salvou, como um símbolo de heroísmo ante a face do sol que brilha sobre um império mergulhando na estupidez e na corrupção. O túmulo de uma jovem cujo coração já estava inflamado de amor, antes de seu corpo ser arrebatado com avidez, ser usurpado pela luxúria e ser apedrejado pela tirania.... Ela manteve a sua fé até a morte; o seu amado colocou-lhe flores no túmulo para que enquanto murchassem fossem um depoimento sobre essas almas que o Amor escolheu e abençoou, destacando-as dentre as pessoas cegas pelas coisas terrenas e emudecidas pela ignorância.

 

O túmulo de um homem miserável exaurido pelo trabalho árduo e longo na terra do monastério, que pedira pão para alimentar os filhos famintos, e que lhe fora negado. Esse infeliz recorrera à mendicância, mas ninguém lhe dera atenção.

 

Quando sua alma o impeliu a reaver uma pequena parte da safra que plantara e colhera foi aprisionado e surrado até a morte. Sua pobre viúva erigiu uma cruz sobre seu túmulo como um símbolo no silêncio da noite e ante as estrelas do céu, a testemunhar contra esses padres que converteram o bom ensinamento de Cristo em afiadas espadas com as quais cortam o pescoço do povo e rasgam os corpos dos fracos. O sol desapareceu atrás do horizonte como se estivesse cansado dos problemas do mundo e sentisse aversão pela submissão humana.

 

Nesse momento, o entardecer começou a tecer um delicado véu das fibras de silêncio e o colocou sobre o corpo da Natureza. Estendi minha mão em direção aos túmulos, apontando os seus símbolos; ergui os olhos em direção ao céu e exclamei:

 

— Oh, Bravura, esta é a tua espada, enterre-a agora na terra! Oh, Amor, esta são as flores, queime-as com o fogo! Oh, Jesus, esta é a Tua Cruz, mergulhe-a na obscuridade da noite!

 

(Do Livro "Espíritos Rebeldes")